MUSEU DA DANÇA

O Samba do crioulo doido dezessete anos depois

Imagem: Gil Grassi | Quinta, 16 de Setembro de 2021 | por Sonia Sobral |

Dezessete anos atrás o Brasil era outro, assim como a dança contemporânea

O samba do crioulo doido foi criado por Luiz de Abreu, em 2004, contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural Dança. Dividindo a cena com mais 13 obras selecionadas pelo programa, O Samba explodiu. Muitíssimo bem recebido pelo público da sala Itaú Cultural, basicamente formado por artistas, programadores, teóricos e críticos de dança, intuímos que aquela obra era uma revolução. Estávamos diante de um projeto anticolonial sem saber nomeá-lo.

Até então, pelos menos esse público de 250 pessoas, não tinha presenciado a dimensão de um gesto individual tão cortante, desconcertante e belo, feito por um artista preto, no palco de uma instituição financeira na Avenida Paulista.


Muitos tabus foram expostos. Um homem frontalmente nú apenas calçado com botas prateadas de uma bicha morta por HIV; um homem negro fazia isso, uma bicha que ousava fazer isso com  o tecido da bandeira do Brasil enfiado no cú. Uma bicha preta nua em cena a escancarar a resistência do corpo negro, a escancarar a objetificação desse corpo ao longo da história, a apontar o dedo para os colonizadores brasileiros e europeus. Só em cena, sustentando uma postura política, ética e artística, enfrenta os discursos nacionalistas estereotipados sobre o corpo negro.

Luiz retoma o título de um antigo samba homônimo criado em 1966, em plena ditadura militar, de autoria de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do compositor Sérgio Porto, em que ironiza a obrigatoriedade imposta às escolas de samba de retratarem nos seus sambas de enredo somente fatos históricos. A canção descreve como Chica da Silva obrigou a Princesa Leopoldina a se casar com Tiradentes, e este depois eleito como Pedro Segundo, quando procurou o padre José de Anchieta e, juntos, Anchieta e D. Pedro, proclamaram a escravidão.

Na obra de dança, a bandeira do Brasil é exposta todo o tempo ao som da voz de Elza Soares repetindo o refrão "a carne mais barata do mercado é a carne negra”.


O que aconteceu ali? Luiz insurgiu-se. Talhou a hegemonia e trouxe para a frente aqueles que estavam atrás da parede branca. É difícil mensurar as consequências que produziu, até hoje sinto-o como um magma invisível e quente.

Este solo de 24 minutos viajou o Brasil, escandalizou o Brasil, chegou até o Parque Nacional da Serra da Capivara no estado do Piauí, apresentou-se no festival Interartes que buscava patrocínio para o Museu do Homem Americano. O Samba foi programado para o segundo dia do festival de forma que o governador do Estado, sua esposa evangélica e comitiva não vissem o trabalho. Aconteceu de não irem na abertura e sim no dia da apresentação do Samba. Foi a última edição do festival.

E não parou de andar. Entusiasmados curadores brasileiros e europeus sentiam-se corajosos por mostrar tal trabalho e orgulhosos por chocar o público conservador.

O Samba foi apresentado por Luiz por uma década. Em 2017 o solo foi remontado no corpo do bailarino baiano Pedro Ivo dos Santos e apresentaram-se em Salvador, Recife, Brasília e Campinas.

A onda reacionária forjada no Brasil em 2019 provocou o cancelamento de apresentações já pautadas, devido ao medo de instituições frente ao ódio bolsonarista.

Em 2020, a convite do Panorama Festival de Dança do Rio de Janeiro em parceria com o Centre National de la Danse, de Paris, O samba foi novamente remontado, dessa vez com o bailarino pernambucano Calixto Neto. Estreou em Paris e foi apresentado em outras cidades francesas, na Suíça e na Finlândia. A turnê européia foi interrompida devido à pandemia da Covid 19. Com a recente reabertura dos teatros na França, O Samba do Crioulo Doido apresenta-se essa semana no Festival de Outono, em Paris.


Um filme de 15 min foi criado mostrando o processo de transmissão de Luiz para Calixto com a colaboração de Pedro Ivo. Luis padece atualmente de grande limitação na visão. No filme o vemos criando um caminho de comunicação com as mãos e as palavras. Tocando o corpo de Calixto sente o tempo, a musculatura e o movimento do Samba passar para outro corpo negro.[1]

No programa O dia seguinte (ao 13 de maio), realizado pela equipe curatorial do Centro Cultural São Paulo para refletir criticamente sobre a efeméride da abolição da escravatura, Luiz de Abreu, Calixto Neto e Ayrson Heráclito participaram, a meu convite, de um encontro on-line para discutir os contextos nos quais a obra foi criada e remontada, refletir sobre a transmissão da herança pessoal e cultural através dos corpos e de como esta obra tornou-se referência para a produção artística contemporânea. A excelente conversa aconteceu em 16 de maio de 2021, no youtube do CCSP. [2].

O Crioulo Doido demole com seu samba o discurso branco sobre a escravidão abolida. Houvesse acontecido uma abolição, esse trabalho não existiria. 


*Agradeço Gil Grossi pela cessão das fotos. Gil registra dança contemporânea desde 1985. Seu acervo é um dos mais importantes portais para pesquisa e conservação da história da dança paulista através da fotografia, dos últimos 35 anos. Seu trabalho e dedicação são gigantes. Gil é ainda professor e bailarino.


[1] Teaser do documentário: O Samba do Crioulo Doido: régua e compasso. (15’). Realização e edição: Calixto Neto. Com: Calixto Neto, Luiz de Abreu, Jackeline Elesbão, Pedro Ivo Santos e Fabricia Martins. Filmado em Salvador, Pantin e Reims (FRA) em 2020/ Apoio: Centre National de la Danse (FRA).

[2] Conversa com Luiz de Abreu, Calixto Neto e Ayrson Heráclito

Este texto é de responsabilidade da autora e não reflete a opinião do Portal MUD.

Publicado por :



Sonia Sobral

Gestora e curadora de dança



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