LABORATÓRIO DA DANÇA

Dança e cuidado de si

Imagem: Suzana Bayona. | Terça, 13 de Novembro de 2018 | por Suzana Bayona |


Venho trilhando há alguns anos meu fazer profissional em dança permeado pelo pensamento das abordagens somáticas. Como dançarina, educadora de dança e também graduada em psicologia, considero-me uma contínua buscadora de práticas que promovam a integração corpo-mente, em que corpo e movimento sejam elementos do processo da investigação de si. Interesso-me imensamente por esse entrecruzamento de campos de saber, para confluir num fazer que seja estético e ético.

Nesse percurso, fiz contato com diversos métodos e técnicas da Educação Somática. Quero aqui, porém, destacar meu encontro com uma abordagem específica, que pratico desde 2011, e que é parte geradora da pesquisa que sigo trilhando: o Movimento Autêntico.

O Movimento Autêntico é uma prática de investigação de si e do/no movimento, que tem como elemento disparador as perguntas: Qual meu impulso de movimento? O que me leva a mover? Entendendo que mover não diz respeito apenas à ação do movimento, podendo ser pensamentos, sensações, sons, memórias, vozes internas ou externas, etc (JORGE, 2009). Tem como especificidade o fato de ser uma investigação relacional: a abordagem conta com uma estrutura que se dá na presença de (pelo menos) duas pessoas, a movedora, que fechará seus olhos e assim prosseguirá na escuta de impulsos que a levam ao movimento. A outra pessoa permanecerá de olhos abertos, e ao ver o outro, observará o que acontece consigo própria, e o modo como é tocada pela experiência daquilo que testemunha.

A abordagem surgiu nos Estados Unidos, na década de 50 e 60 com Mary Starks Whitehouse, bailarina formada pelo Wigman Central Institute, em Dresden/Alemanha. Sua pesquisa com dança e improvisação associada a estudos em psicologia analítica jungiana, a influenciaram no desenvolvimento do que chamou Movimento em Profundidade. Tais estudos tiveram continuidade com sua discípula, Janet Adler, que passou a nomeá-lo como autêntico. Adler afirma que foi o crítico de dança John Martin, nos anos 30, o primeiro a utilizar a expressão movimento autêntico, ao referir-se à dança de Mary Wigman (GEISSINGER, 2015).

Com característica evidentemente transdisciplinar, esta abordagem propicia conexões no desenvolvimento da percepção e da consciência do corpo, que podem relacionar-se tanto com os campos da cura e da arte, bem como com os estudos místicos e transcendentes (JORGE, 2009). Trazendo-a para minha prática em dança, vejo-a em consonância aos princípios de campo expandido na arte, termo utilizado inicialmente pela artista plástica Rosalind Krauss em 1979, para designar um modo de criar que se dá pelo trânsito entre linguagens. No entanto, podemos dar um passo além para entender que alguns artistas têm buscado diálogos não somente entre linguagens, mas com outras áreas de conhecimento como filosofia, psicologia, biologia, dentre outras, e com diferentes dimensões da cultura e da vida. O que observamos como resultante desses encontros ampliadores é a possibilidade de ressignificação do próprio conceito de arte e do enquadramento desse campo de saber (QUILICI, 2014).

Eis então, que é nesse contexto que proponho a prática do Movimento Autêntico como treinamento em dança e artes da cena. No entanto, para efetivar minha proposta, é preciso ampliar o entendimento de treinamento e considerar que há mais habilidades e necessidades da cena que não apenas a aquisição de técnicas voltadas para a preparação e criação de espetáculos. Chamo a atenção para incluir elementos que promovem a escuta e o cuidado de si, que dão acesso à alteração de hábitos cotidianos e modos de viver. Essa ação oferece o entendimento de que a arte pode ser espaço para processos de investigação e transformação do próprio artista (QUILICI, 2015).

A noção de cuidado de si vem de civilizações da Antiguidade, na filosofia greco-romana até os dois primeiros séculos d.C. (FOUCALT, 2004). Estava presente nessas culturas na forma de práticas concretas, como exercícios, alimentação, meditação, estudos, sendo princípios importantes para conduta individual e social. Há aqui um pensamento essencial, que se diferencia da filosofia tal como a entendemos hoje: a não separação na busca do conhecimento e nas práticas de transformação de si. Tal integração implica entendermos um modo de viver em que o auto cuidado é chave para realização da vida cotidiana e política, e envolve uma ética e uma estética, por desenvolver uma arte da existência (QUILICI, 2015).

Assim, minha pesquisa prática e experiencial me leva a constatar e enumerar três elementos que a prática do Movimento Autêntico pode trazer, enquanto treinamento em campo expandido para artistas da cena, no contínuo cultivo de seu fazer profissional:

1) Integração do EU de forma mais direta ao processo de pesquisa: no momento da prática do Movimento Autêntico, podem emergir gestos que dizem respeito a questões pessoais, emocionais, reflexões, conflitos que venho lidando em meu viver e nada disso fica de fora do treinamento. Trata-se não apenas de incluir a sensibilidade do artista a serviço de um determinado processo criativo, mas de agregar as instâncias subjetivas que possam se fazer presentes no momento. Suely Rolnik (2002) nos traz a bela contribuição de que a subjetividade não é apenas uma instância psicológica, a ser confinada em ambientes terapêuticos. Ela é também estética, pois nos coloca em contato com sensações não nomeáveis, e nos convoca a inventar a própria existência.

2) Fortalecimento e sustentação das relações: trabalhos artísticos têm como característica acontecerem em grupo. Mesmo que sejam trabalhos solo, há sempre o diálogo com mais de uma pessoa, em parcerias e colaborações. Ao exercitar a escuta de si em relação ao outro e adotando um modo de diálogo que viabiliza a apropriação dos julgamentos (tudo o que vejo é meu, e não o/do outro), aprofunda-se a possibilidade de encontro e a construção de um ambiente de acolhimento.

3)  Desenvolvimento de estado(s) de presença: ao fechar os olhos para mover ou abri-los para testemunhar, amplia-se a habilidade de atenção para sensações, para conexão consigo e com tudo que se dá no agora. Abarca o florescer de uma ação receptiva, de escuta dos impulsos que emergem, que é menos propositiva e racional, e que dá voz aos saberes do corpo. Esses são aspectos primordiais quando falamos de presença cênica; mas mais que isso, em nosso contexto de trânsito, entendemos que propiciam também o cultivo de presença no viver.

Esses três aspectos são intimamente relacionados e complementares. Vejo-os tecendo uma rede sutil e invisível, agregando qualidades que potencializam o espaço de criação. Eles levam-nos também a uma dilatação de fronteiras, pois dão alimento para cuidar não apenas da pesquisa corporal, mas dos diversos momentos que compõem o fazer criativo. O ofício do artista não é algo mecânico, pede convivência, organização, e também ouvir, ceder, aceitar, transformar. Tudo isso dá ao processo na sua totalidade – o como eu vivo - maior importância do que ao resultante da possível obra artística a qual se deseja chegar. Criar, nessa perspectiva, pode ser muito mais do que criação cênica. E criação cênica, munida dessa possibilidade mais ampla de criar, é para mim de uma força imensa.


BIBLIOGRAFIA

FOUCAULT, Michel. Tecnologias de si. VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária. São Paulo, n. 6, p. 321 - 360, 2004.

GEISSINGER, Annie. Hacia lo Desconocido: Entrevista con Janet Adler. (Tradução Espanhol de Lucía Martinez). In: A Moving Journal. Ed. Autumn-winter: 1998. Disponível em: <http://authenticmovementcommunity.blogspot.com.br/2014/03/hacia-lo-desconocido.html>. Acesso em: 20/02/2015.

JORGE, Soraya. O Pensamento Movente de um corpo que dança (ou a necessidade de se criar um estilo para falar de Movimento Sensível). Monografia (Especialização em Terapia através do Movimento, Corpo e Subjetivação) - Faculdade Angel Vianna, Rio de Janeiro, 2009.

QUILICI, Cassiano. O campo expandido: a arte como campo filosófico. Sala Preta, Revista de Artes Cênicas, São Paulo, V.14, n 2, p. 12 – 21, 2014.

_______. O ator-performer e as poéticas da transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015.

ROLNIK, Suely. Subjetividade em obra: Lygia Clark, artista contemporânea. Corpo & Cultura, Projeto e História: Revista do Departamento de História e Programa de Estudos Pós Graduados em História da PUC-SP. São Paulo, n. 5, p. 43-54, 2002.

_______. Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. 2. Ed, Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2014.


*Este texto é parte de minha pesquisa de mestrado. O material completo pode ser obtido no link:  http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/330331


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Publicado por :



Suzana Bayona

Artista da dança e mestra em artes da cena



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